Reciclagem
Berenice
Licença, patrão. Assim Berenice chegava, batendo palmas e entrando pelos quintais, sem cerimônia. O carrinho ficava na rua, cheio de papelões, caixas, latas e outras bugigangas. Eu admirava como uma mulher tão miúda conduzia aquilo pela cidade. Berenice ganhava a vida com recicláveis. Conheci-a quando passou pela loja. Sorridente e decidida, ela logo cativou a simpatia de todos. Sempre tinha uma palavra sobre seus muitos filhos. Sempre um comentário de suas molecagens. E sorria enquanto falava e abria as caixas para acomodá-las no carrinho. Berenice era o alto astral em pessoa. A vida palpitava em seus olhos e espalhava uma onda de bem-estar. Não havia quem ficasse indiferente diante dela. Minha vida é cheia de luz, patrão. Deus, nosso Senhor, não cansou de me abençoar, dizia sempre que alguém questionava seu permanente otimismo. Todos na loja nos tornamos seus fornecedores.
Tesouros improváveis
Um dia chegou com o carrinho cheio, como de costume. Fim de ano. Faxina geral, juntamos mais do que das outras vezes. Deixa, Berenice, que eu levo de carro até sua casa, sugeri. Foi num 27 de dezembro.
Chegamos às cinco da tarde, o sol era grande. Logo que entrei, depois de acomodar os papéis num canto, notei as estantes presas às paredes. E livros, muitos livros. Acomodados, enfileirados como numa biblioteca, alguns abertos pelo chão, que Berenice foi juntando à minha frente, outros sobre uma mesa no meio da sala; livros usados, sujos, rotos, muitos livros. Alguns de capa dura, feito coleção, outros sem capa, só com a página de rosto, livros e mais livros.
Apologia
Faço coleção, disse ela, notando meu espanto. Começou com este aqui, e mostrou-me um folheto surrado: “O Corvo, Edgar A. Poe”. Veio junto com uns jornais. Li de uma vez só. Foi o sinal de Santo Expedito numa novena que eu fazia. O senhor sabe, a menina que perdi. Eu pedi proteção. E veio esse livro do corvo que acompanhava o santo.
Fala de uma tristeza de quem perdeu o amor, fala da dor de quem quer encontrar o motivo. Eleonora, ela se chamava, foi judiação mesmo… E daí pra frente eu vi que minha vida estava toda escrita. Não assim, começo, meio e fim. Mas do jeito que Deus conversa com a gente quando é preciso tomar um rumo. Ele manda um sinal, eu sei. O corvo dizia “craz” pro santo e ele entendeu que era pra mudar de vida naquela hora, ouvi o padre explicando. O corvo veio pra mim também dizendo mais coisa, pondo medo, desafiando, e eu entendi direitinho. “Nunca mais, nunca mais”, ele dizia e eu cismei. Eu não tinha que perder mais nenhum, não senhor. E foi ali que comecei e vim guardando. Eles me livraram do desespero. Tem gente que passa por coisa pior, eu sei.
Ultimação
Tudo justo, humano. E Berenice falava e falava e contava dos encantos dos livros em sua vida, toda ela transformada no momento em que O Corvo, de Poe, caiu em suas mãos por obra de Santo Expedito. No final, ela sorriu, seu grande sorriso iluminado, acalentado e apaziguado. Não havia o que dizer. A palavra se diz. Deus anunciado aos quatro ventos e o avesso. Tudo entendido.
Reciclagem – por Renato Rubraterra