Conto Educativo

Conto Educativo

A tarefa

Estava escuro lá fora. A noite, sem estrelas e sem lua, estendia seu manto negro urbano e o menino, pés descalços ligeiros, compreendeu sem palavras ou imagens que era chegada a hora, o momento certo ansiado.

Fechou a porta do barraco em silêncio e misturou-se ao breu da noite. A escola era do outro lado da cidade, precisava ser rápido.

Foi pensando em dona Dulce, nos pratos que fazia diariamente, nas sobremesas, paçoquinhas e doces de leite. Reforçava a coragem para praticar o delito enquanto a escuridão o envolvia e encurtava o trajeto.

Os obstáculos

Chegou perto do muro e encontrou com facilidade a passagem. Entrar no prédio àquela hora foi mais fácil do que à luz do dia. Nos corredores escuros foi-se guiando pelo instinto e depressa encontrou a cozinha. Fechada.

Praguejou diante da porta, não supunha impedimentos. Tentou forçar a entrada, mas o maciço não se moveu. Era caso de outros recursos.

Saiu à procura de um pedaço de ferro, uma alavanca que o ajudasse a forçar a entrada. Circulou pelo pátio, foi até os portões, rodeou pelos fundos. Nada.

Lembrou-se, então, do prédio em construção. Todo dia passava por ele no caminho do barraco. Lá certamente encontraria o suporte.

Mais obstáculos

Voltou quase metade do percurso até o canteiro da obra. Havia um cão. Merda. O animal percebeu sua aproximação tão logo ele alcançou o alambrado. Farejou pela fresta, mas não latiu. Afastou-se. Que fazer?

Pensou em subir pela grade vizinha, alcançar o segundo piso, mas e se o cão também tivesse acesso? E se não houvesse ferro nenhum no segundo piso? Era mais provável estivesse tudo embaixo. E se o cachorro latisse e o vizinho acordasse? Merda, merda.

Ponderou tudo isso, as possibilidades todas em sua imediata circunstância, tudo sem muitos senões, apenas no raso das coisas. Por fim, considerou soltar o cão abrindo o portão da frente. Precisaria de uma isca.

Imaginou um osso, recém descarnado, num caldeirão borbulhante, o cheiro intenso, saliva na boca, e dali partiu para os pratos de dona Dulce, as sopas, a batata com carne, o macarrão, os molhos… Onde encontrar um osso?

Dobrou a esquina e desceu mais duas quadras até um açougue. Nos fundos, nas latas de lixo, fuçou e encontrou o que procurava.

Subiu, decidido, a ladeira e chegou ao sobrado. Passou o osso pela fresta diretamente à boca do cão, que agradecido foi para um canto. Desistiu de espantá-lo, o pobre também tinha fome.

Abriu e entrou, buscou e encontrou um bom pedaço de ferro. Sorriu, primeira vez no dia, mas a noite avançava. Era preciso pressa.

A conquista

Correu o caminho da escola com a rapidez do vento. O ferro nas mãos. Era um atleta raquítico disputando uma prova. O bastão era a chave para a linha de chegada e os louros de todas as delícias sonhadas. E, então, a escola.

Passou pelo vão, dobrou à direita, entrou pelo corredor, poucos metros mais, desceu a escada, cruzou o pátio, alcançou o destino. A porta. Respira, menino. Do outro lado, o prêmio querido. Os quitutes de dona Dulce. Tudo lá, preparado, com certeza, para o dia seguinte, na geladeira, talvez sobre os balcões e nas prateleiras dos armários.

Enfiou a chave na fresta e forçou o batente. A porta gemeu. Brigava com ele, menino, censurando o gesto, gritando injúrias da desonestidade. Ele forçou mais, as duas mãos ajudando, os pés empurrando as paredes, todo ar dos pulmões e PAM!

Abriu-se o imaculado recinto.

A surpresa

Escuro e frio, a claridade vinha da rua, pelas janelas. Não quis as luzes para despertar suspeitas. Alguém passaria pela rua. A geladeira aberta, no entanto, revelou-lhe com clareza uma injúria.

Vazio, limpo de tudo. Nada de doces, nem queijadinhas, nem paçoquinhas, nem gelatinas ou pés-de-moleque. Nenhuma lata de leite, nenhuma bolacha. Nada vezes nada. E enquanto os olhos confirmavam o serviço das mãos pelos balcões, uma fúria foi crescendo desde dentro. Foi ganhando volume, primeiro queimando o estômago, onde tudo nasce, e dali subindo os canais, aos poucos. Quando apalpou a última prateleira já a ira alcançava a garganta e o grito que não se ouviu foi convertido na lágrima que cobriu-lhe os olhos.

A revolta

Transtornado, deixou o cômodo sem direção, perambulando pelos corredores. Ia às cegas, cheio de raiva, abrindo as portas, passando as salas, contemplando cada detalhe infame. Os painéis de aviso, os cartazes coloridos, os quadros e os retratos, o presidente e o governador, o prefeito e o diretor, as placas indicativas, direção, professores, biblioteca, tudo ali, detalhado, repetido, e o ódio duplicado, crescido nas janelas dos olhos vendo tudo, tudo, tudo…

Misteriosa contemplação acendeu a perversa maldade na mente do moleque. Salas abertas, destrancadas, todas as outras, descaradamente livres, ele avançou pela biblioteca. Passou pelos volumes, bem dispostos nas prateleiras novas, bonitos, lisinhos e foi apanhando o que pôde. Capas coloridas, páginas branquinhas, imaculadas, porém sem figuras. Só letras, estéreis. Rasgou com vigor todos os belos. Juntou com as mãos todos os outros, derrubou silenciosamente as prateleiras de madeira envernizada, riscou o fósforo e ateou fogo às páginas.  O clarão cresceu.

Vermelhas e amarelas, as chamas iluminaram o quarto. Seus olhos duros, negros, saboreando o espetáculo, entregando às entranhas o doce sabor da vingança.

O rescaldo

A lua nova iluminava o céu quando ele saiu para ganhar liberdade. Com menor ansiedade e a fúria contida, deixou para trás o prédio educativo. Enquanto as chamas cresciam, ele tornava à noite, para o barraco, mãe e irmãos, no lado oposto da urbe.

Conto Educativo, por Renato Rubraterra.

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